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A Rota do Brilho*
Direção: Deni Cavalcanti
Brasil, 1990.

Por Gabriel Carneiro

Em 1990, a Boca do Lixo enquanto polo de cinema quase já não mais existia. No meio dos anos 1980, a Boca havia se especializado em filmes de sexo explícito, quase não tendo espaço para outras produções. A competição com o produto estrangeiro, muito mais barato e igual rentabilidade, logo extirpou esse mercado no Brasil, que passaria a ser confinado ao vídeo. Para agravar, o então presidente Fernando Collor de Melo fechou a Embrafilme e o Concine, órgão que regulava o cinema no Brasil e a cota de tela de filmes brasileiros. Nesse contexto, com a Boca do Lixo completamente esvaziada do cinema, poucos diretores se arriscavam e tentavam uma vida com filmes – mesmo os diretores e técnicos que migraram para o explícito já haviam largado a carreira. Deni Cavalcanti, que nunca fez explícito, arriscou-se.

Em 1990, seis anos após lançar seu longa anterior – e talvez sentindo que, com a derrocada do explícito, aquelas produções típicas da Boca pudessem retomar seu espaço -, lançou, em novembro, A Rota do Brilho, um policial regado de sexo e nudez, estrelado por Alexandre Frota (então galã global), Marcos Manzano (modelo, que se tornaria apresentador e sócio do Clube das Mulheres) e Gretchen. O filme foi mal de bilheteria, terminando mais uma carreira da Boca. O longa, porém, teve uma sobrevida em 1994 com o caso Lilian Ramos, uma atriz coadjuvante do filme que seria fotografada sem calcinha ao lado do então presidente Itamar Franco.

Deni Cavalcanti conheceu sucesso na Boca. Foi o diretor que estreou na Boca nos anos 1980 e não fez sexo explícito que mais filmou. Foram seis longas, em dez anos: a comédia “Amélia, Mulher de Verdade” (1981), os dramas “Aluga-se Moças” (1981), “Procuro uma Cama” (1982) e “Aluga-se Moças 2” (1983), e o sertanejo “O Filho Adotivo” (1984). “Aluga-se Moças”, em que despia as chacretes Gretchen, Rita Cadillac e Índia Amazonense, fez mais de 3 milhões de espectadores.

Pois bem, A Rota do Brilho buscava recuperar, com celebridades televisivas, o imaginário daqueles filmes. O longa ensaia convenções narrativas diversas dos filmes policiais norte-americanos dos anos 1980, com uma temática bastante urbana e, em tese, bastante ligada ao cotidiano paulista. No filme, Frota e Manzano fazem dois policiais, Tom e Nil, investigadores de narcóticos, que se veem em meio a assassinatos de prostitutas em condições esdrúxulas. Acontece que um dos traficantes, membro da grande quadrilha das drogas de São Paulo, tem fetiches sexuais bizarros. Tom e Nil devem, portanto, desbaratar o narcotráfico na rota ferroviária entre Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, e São Paulo.

Para tal, Cavalcanti se utiliza da proeminente fórmula dos buddy movies, tão em voga no policial dos anos 1980, com forte acento na comédia. Os buddy movies são esses filmes de parceiros inseparáveis, mas personalidades distintas, em geral homens, deixando transparecer uma certa afetividade masculina, que ainda hoje permanece um tabu. Tom e Nil são uma representação rara dos buddy movies no Brasil e funcionam bem no registro da comédia, em especial por conta de diálogos absurdos sobre sexo.

Esse tom afetivo é reforçado com uma guinada um tanto espetacular, em que uns dos personagens some faltando meia hora de filme. Seja ousadia ou problemas de produção, Cavalcanti consegue levar a trama com bastante interesse – o filme, possivelmente, fica até melhor.

No registro do policial, o filme está longe de se equiparar a outros exemplos da Boca do Lixo, como o já aqui tratado O Rei da Boca, de Clery Cunha, especialmente por conta da trama confusa e novelesca, que traz elementos demais indiferentes à linha narrativa principal. Vale, porém a tentativa de abordar a questão do tráfico de drogas em São Paulo e o registro nada realista da polícia (granadas, tortura com pau de arara e choque para qualquer informante, p.e.).

A Rota do Brilho, um longa evidentemente barato, sofre vez por outra pelo pouco tempo de filmagem ou pela falta de maior esmero. É, porém, uma tentativa válida de recuperar uma audiência – que, em outros tempos, talvez tivesse enchido os cinemas. O filme, em compensação, ainda diverte um bocado, com um tipo de encenação esquecida no tempo, calcada no sórdido e na ação.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em dezembro de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

Meus Homens, Meus Amores*
Direção: José Miziara
Brasil, 1978.

Por Gabriel Carneiro

Por diversas vezes, um elevador de um prédio residencial é o centro de Meus Homens, Meus Amores. Lá, encontram-se, ocasionalmente, Miriam e Ana, vizinhas que apenas se conhecem de vista e trocam, naquele espaço, palavras e gestos de gentileza, ainda que resvalem em problemas e situações ordinários – gripe, festa, viagem. É uma cumplicidade serena e mundana, típica da grande metrópole, que transforma o ambiente público restrito – o do prédio residencial – num ponto de impessoalidade. O elevador, descobrimos também, é o espaço da normalidade, ou melhor, o espaço em que Miriam e Ana podem se sentir normais, comuns, sem grandes aflições ou consternações.

Miriam e Ana, as vizinhas que pouco se encontram, protagonizam Meus Homens, Meus Amores, segundo longa-metragem escrito e dirigido por José Miziara, também lançado em 1978 – meses depois do estrondoso sucesso e sua obra-prima O Bem Dotado – O Homem de Itu (1978). Egresso do circo e da televisão, Miziara trabalhou muito como ator, antes de estrear na direção. Sua carreira no meio artístico começou nos anos 1950. Apenas em 1976, faz seu primeiro trabalho como diretor para cinema, com o episódio O Furo, do longa Ninguém Segura Essas Mulheres, única incursão dos Estúdios Silvio Santos na telona. Na Boca do Lixo, Miziara ainda faria Embalos Alucinantes – Troca de Casais (1979), As Intimidades de Analu e Fernanda (1980), Os Rapazes da Difícil Vida Fácil (1980) e Pecado Horizontal (1983), entre vários outros, antes de voltar para televisão, como ator regular do programa A Praça é Nossa.

Mais conhecido por suas comédias de costumes, Miziara era também um competente diretor de melodramas. Meus Homens, Meus Amores, provavelmente um de seus filmes menos conhecidos, filia-se a esse segundo gênero. Se o elevador é mostrado como o ponto de neutralidade na história, é só pra explorar a verve trágica de duas mulheres que tentam se encontrar dentro de uma sociedade opressora para com a figura da mulher. Miriam, interpretada pela cantora Rosemary, é uma jovem que cresceu ouvindo de sua mãe, uma religiosa fervorosa, que não aceita qualquer incursão sexual de sua filha, como uma moça direita deve se comportar. Traumatizada, Rosemary é confrontada pelos desejos, mas sem saber como lidar com eles – externando-os em seus desenhos -, e se sentindo ameaçada por qualquer aproximação masculina. Apenas um antigo amigo (John Herbert) do falecido pai consegue provocar nela algum fascínio. Ana (Sílvia Salgado), por sua vez, é uma mulher sem pudores, mas que é constantemente cerceada pelo marido muito mais velho (Roberto Maya), um sujeito que não lhe dá liberdade alguma (como ver as amigas, ir em festas, estudar e trabalhar fora etc).

A impessoalidade da metrópole – personificada pelo elevador – aproxima e afasta Miriam e Ana. Se, como já dito, aquilo lhes traz um senso de normalidade, afasta-as como mulheres que sofrem do mesmo mal, por mais que elas, como indivíduos, sejam diferentes. Casta, Miriam não consegue se relacionar socialmente. Ela deve carregar o peso da crença de sua mãe, um tanto atrasada e bastante moralista. Tem um caminho a seguir – e desviar-se dele é uma afronta à própria existência da mãe. Ana também sofre com o moralismo e a crença do marido. Não a religião da mãe, mas o puro e simples machismo, em que o homem soberano é livre para o que quiser e cabe à mulher servi-lo. Em determinado momento, ele brada que, para ficarem juntos, ela deve ser uma mulher do tempo dele – e não do dela, jovem e libertário.

Miziara, como bom contador de história, compõe a história de ambas paralelamente, construindo bem as personagens e apontando para a evolução dramática da história. O cineasta acena para uma questão maior: nada é o pior do que o cerceamento da liberdade individual, não importa sob qual aspecto. Miziara sempre foi ousado tematicamente. Ao longo de seus filmes, trabalhou tabus diversos, como o sexo livre, a troca de casais, o lesbianismo, a prostituição, entre outros, em histórias hiperbólicas sim, em que tudo é levado às últimas consequências, mas com uma abordagem desmistificadora. É o mesmo caso em Meus Homens, Meus Amores, que tem esse título quase irônico. Poucos eram os filmes que carregavam de maneira tão explícita a bandeira da liberdade sexual da mulher sem algum tipo de condenação.

Miriam e Ana são tão sufocadas pela pressão da sociedade, e, por não saberem lidar com aquelas situações – o homem que se aproveita da ingenuidade e o machista que não sai de cima -, acabam tomando medidas drásticas, no susto. Elas tentam reconquistar a liberdade, a ideia da normalidade de suas vidas, não importa o que as custasse.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em setembro de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.