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Meus Homens, Meus Amores*
Direção: José Miziara
Brasil, 1978.

Por Gabriel Carneiro

Por diversas vezes, um elevador de um prédio residencial é o centro de Meus Homens, Meus Amores. Lá, encontram-se, ocasionalmente, Miriam e Ana, vizinhas que apenas se conhecem de vista e trocam, naquele espaço, palavras e gestos de gentileza, ainda que resvalem em problemas e situações ordinários – gripe, festa, viagem. É uma cumplicidade serena e mundana, típica da grande metrópole, que transforma o ambiente público restrito – o do prédio residencial – num ponto de impessoalidade. O elevador, descobrimos também, é o espaço da normalidade, ou melhor, o espaço em que Miriam e Ana podem se sentir normais, comuns, sem grandes aflições ou consternações.

Miriam e Ana, as vizinhas que pouco se encontram, protagonizam Meus Homens, Meus Amores, segundo longa-metragem escrito e dirigido por José Miziara, também lançado em 1978 – meses depois do estrondoso sucesso e sua obra-prima O Bem Dotado – O Homem de Itu (1978). Egresso do circo e da televisão, Miziara trabalhou muito como ator, antes de estrear na direção. Sua carreira no meio artístico começou nos anos 1950. Apenas em 1976, faz seu primeiro trabalho como diretor para cinema, com o episódio O Furo, do longa Ninguém Segura Essas Mulheres, única incursão dos Estúdios Silvio Santos na telona. Na Boca do Lixo, Miziara ainda faria Embalos Alucinantes – Troca de Casais (1979), As Intimidades de Analu e Fernanda (1980), Os Rapazes da Difícil Vida Fácil (1980) e Pecado Horizontal (1983), entre vários outros, antes de voltar para televisão, como ator regular do programa A Praça é Nossa.

Mais conhecido por suas comédias de costumes, Miziara era também um competente diretor de melodramas. Meus Homens, Meus Amores, provavelmente um de seus filmes menos conhecidos, filia-se a esse segundo gênero. Se o elevador é mostrado como o ponto de neutralidade na história, é só pra explorar a verve trágica de duas mulheres que tentam se encontrar dentro de uma sociedade opressora para com a figura da mulher. Miriam, interpretada pela cantora Rosemary, é uma jovem que cresceu ouvindo de sua mãe, uma religiosa fervorosa, que não aceita qualquer incursão sexual de sua filha, como uma moça direita deve se comportar. Traumatizada, Rosemary é confrontada pelos desejos, mas sem saber como lidar com eles – externando-os em seus desenhos -, e se sentindo ameaçada por qualquer aproximação masculina. Apenas um antigo amigo (John Herbert) do falecido pai consegue provocar nela algum fascínio. Ana (Sílvia Salgado), por sua vez, é uma mulher sem pudores, mas que é constantemente cerceada pelo marido muito mais velho (Roberto Maya), um sujeito que não lhe dá liberdade alguma (como ver as amigas, ir em festas, estudar e trabalhar fora etc).

A impessoalidade da metrópole – personificada pelo elevador – aproxima e afasta Miriam e Ana. Se, como já dito, aquilo lhes traz um senso de normalidade, afasta-as como mulheres que sofrem do mesmo mal, por mais que elas, como indivíduos, sejam diferentes. Casta, Miriam não consegue se relacionar socialmente. Ela deve carregar o peso da crença de sua mãe, um tanto atrasada e bastante moralista. Tem um caminho a seguir – e desviar-se dele é uma afronta à própria existência da mãe. Ana também sofre com o moralismo e a crença do marido. Não a religião da mãe, mas o puro e simples machismo, em que o homem soberano é livre para o que quiser e cabe à mulher servi-lo. Em determinado momento, ele brada que, para ficarem juntos, ela deve ser uma mulher do tempo dele – e não do dela, jovem e libertário.

Miziara, como bom contador de história, compõe a história de ambas paralelamente, construindo bem as personagens e apontando para a evolução dramática da história. O cineasta acena para uma questão maior: nada é o pior do que o cerceamento da liberdade individual, não importa sob qual aspecto. Miziara sempre foi ousado tematicamente. Ao longo de seus filmes, trabalhou tabus diversos, como o sexo livre, a troca de casais, o lesbianismo, a prostituição, entre outros, em histórias hiperbólicas sim, em que tudo é levado às últimas consequências, mas com uma abordagem desmistificadora. É o mesmo caso em Meus Homens, Meus Amores, que tem esse título quase irônico. Poucos eram os filmes que carregavam de maneira tão explícita a bandeira da liberdade sexual da mulher sem algum tipo de condenação.

Miriam e Ana são tão sufocadas pela pressão da sociedade, e, por não saberem lidar com aquelas situações – o homem que se aproveita da ingenuidade e o machista que não sai de cima -, acabam tomando medidas drásticas, no susto. Elas tentam reconquistar a liberdade, a ideia da normalidade de suas vidas, não importa o que as custasse.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em setembro de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

Padre Pedro e a Revolta das Crianças*
Direção: Francisco Cavalcanti
Brasil, 1984.

Por Gabriel Carneiro

Padre Pedro e a Revolta das Crianças é mais um daqueles filmes inacreditáveis que só a Boca poderia ter produzido. Aproveitando-se do sucesso com a criançada, Pedro de Lara, então jurado do Show de Calouros do SBT, escreveu, produziu e protagonizou essa história de aventura, em que um padre turrão e mal-humorado enfrenta um milionário inescrupuloso e sem coração que domina a cidade. Pedro, claro, faz o padre. O controlador da cidade é José Mojica Marins, numa caracterização que, só não é idêntica ao mítico Zé do Caixão, porque seu nome é Rodrigo Napu. É, talvez, o que mais próximo de filme infanto-juvenil a Boca tenha feito.

Padre Pedro e a Revolta das Crianças apresenta uma típica trama maquiavélica, do bem contra o mal, um tanto educativa e rasteira, com personagens facilmente identificáveis pelas vestes, com a inserção de crianças buscando uma ponte com seu público-alvo, além de alguns personagens um tanto infantilizados e mensagens cristãs. Era uma alternativa da Boca à crescente e cada vez mais dominante produção de filmes de sexo explícito.

O diretor, Francisco Cavalcanti, dono de uma das obras mais prolíficas da Boca, continuada mesmo após seu fim, foi sinônimo de filmes policiais ou de horror, como “O Porão das Condenadas” (1979), “Os Violentadores de Meninas Virgens” (1983), “A Hora do Medo” (1986) e “Horas Fatais (Cabeças Trocadas)” (1986), entre muitos outros. Cavalcanti não é muito afeito a requintes. Seu cinema prescinde disso. É um diretor da crueza formal e da violência humana. Mais próximo, talvez, dos exploitation gringos que tivemos em nosso cinema.

É curioso ver Cavalcanti na direção desse Padre Pedro e a Revolta das Crianças em relação à sua filmografia, ainda que o filme pareça fazer sentido nela. Afinal, é um filme sobre a violência, mas tratado em tom muito mais leve e nada gráfico. Rodrigo Napu é um sujeito capaz de fazer de tudo para manter o mundo ao seu redor como gosta, independente de quem tenha que matar etc. E é um homem contrário à igreja e à religião católica. É um opressor, assim como boa parte dos personagens de Cavalcanti. Certo que, no filme em questão, há também Padre Pedro, esse homem de fé e simples, que preza apenas pelo bem e luta pela saúde das criancinhas.

O próprio Mojica já havia feito, fora dos esquemas da Boca, um filme de cunho religioso católico, Meu Destino em Suas Mãos (1963), um bom drama doméstico. A Boca, por sua vez, investiu em alguns filmes religiosos, mas, em geral, espíritas, afiliando-se ao gênero horror, como os kardecistas Joelma 23º Andar (1979), de Clery Cunha, e O Médium – a verdade sobre a reencarnação (1980), de Paulo Figueiredo. Padre Pedro e a Revolta das Crianças também tem um discurso doutrinário sobre a religião, acerca da necessidade da crença em Deus, ainda que suas mensagens se confundam mais com um ideário da moral e do bom senso.

É um filme cru também, sem firulas e inventividades. Cavalcanti é direto, tanto em termos narrativos quanto em enquadramentos. Não lhe interessa filmar de modo a ressaltar a composição do quadro, e sim de modo a evidenciar o que propõe a história. Padre Pedro e a Revolta das Crianças é mais rasteiro em termos de roteiro, parece, porém, por conta do desejo em opor, sem margens para o contrário, como o bem e como o mal se comportam. É a lógica usada até hoje por muitos filmes infanto-juvenis que se preocupam com o educar.

Um filme infanto-juvenil da Boca do Lixo, porém, é bastante distante da imagem que o público tem dos filmes infanto-juvenis em geral, especialmente dos norte-americanos da Disney e afins. Mesmo dos brasileiros, ainda que, para o padrão de hoje, Trapalhões e Mazzaropi, que faziam maravilhas com esse público-alvo, talvez fossem considerados deveras politicamente incorretos. Se a violência e a agressão estão em Padre Pedro e a Revolta das Crianças, em condições mínimas, o sexo está completamente ausente. Mas não deixa de ser uma visão curiosa para um gênero fílmico. Apostando na inocência, Cavalcanti cria uma aventura um tanto lúdica sobre o coronelismo, simplista e acessível, e bastante divertida.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em julho de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

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