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Amor de Perversão*
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1982.

Por Gabriel Carneiro

Realizado como projeto de encomenda para Paulo de Tarso Silveira e Fritz Jordan, que queriam entrar para o mercado cinematográfico com um melodrama, Amor de Perversão é talvez a produção com mais dinheiro de Alfredo Sternheim – além de elenco de primeira, que inclui nomes como Paulo Guarnieri, Leonardo Villar, Norma Blum, Raul Cortez, entre outros, uma grande equipe, com Carlos Reichenbach na fotografia e Zé Rodrix na música, o filme tem até grua, coisa raríssima nas produções da Boca do Lixo. O filme se centra na desilusão com a vida de um jovem universitário (Guarnieri), filho de um magnata das indústrias que teve de reconstruir sua carreira do zero depois de um grande incêndio.

Alfredo Sternheim, jornalista e crítico de cinema, começou como assistente de Walter Hugo Khouri – “A Ilha” (1963) e “Noite Vazia” (1964) – e dirigiu 24 longas, metade deles com sexo explícito, após a decadência da Boca. Até lá, dirigiu algumas pérolas, como “Anjo Loiro” (1972), “Violência na Carne” (1981), “Tensão e Desejo” (1983) e sua obra-prima, “Pureza Proibida” (1974). Sternheim, cinéfilo, sempre foi grande admirador dos melodramas e do cinema clássico. Não à toa, seus filmes sempre contavam grandes histórias de amor ou tragédias insólitas. Sempre com um tratamento clássico: o que lhe interessava, acima de tudo, era contar uma boa história, acessível a todos os públicos, de maneira a tocar sua audiência – a emoção acima da razão.

“Amor de Perversão” segue essa tendência: melodrama clássico, com o apelo erótico que a Boca exigia – com a musa Alvamar Taddei liderando o elenco feminino. A angústia de seu protagonista, o jovem ricaço, é de origem existencial: já que não há amor em sua vida, não vê propósito em se interessar por nada que lhe impõem – a profissão, os estudos, a noiva etc. Como filho de magnata, sua vida inteira foi traçada pelos pais. Deve, portanto, seguir a tradição e os bons costumes. Quase como um Khouri com vertente social e moral – sem o mesmo brilhantismo, porém, ao trabalhar as angústias internas -, “Amor de Perversão” aposta na máxima tragédia. Quando, enfim, o rapaz encontra uma paixão, sua família a rejeita, por ser de classe social diferente e tida como inferior.

Há um elogio evidente à sensibilidade popular. O popular é autêntico – se fala na lata ou se é rude, aquilo faz parte de uma sinceridade crônica, sem o propósito de ofensa. Em oposição, vemos os ricos, que desdenham de qualquer pessoa que não se comportem da mesma maneira deles, ou que não tenham o mesmo dinheiro. São esnobes e controladores, limitados a uma visão de mundo antiquada. Sternheim sempre foi um libertário, que acredita na liberdade e na individualidade da mulher e das minorias, em oposição ao machismo reinante na Boca. Suas mulheres são fortes, decididas, quando heroínas. O papel marcante em “Amor de Perversão” é justamente o de Alvamar, a namoradinha de classe social tida como inferior. Ela se sustenta, sabe o que quer e sabe controlar em sua vida tudo aquilo que é reprovado socialmente – drogas, sexo etc. Se o personagem de Guarnieri entra num redemoinho sem volta é porque ele não sabe se portar sem a tutela financeira e comportamental dos pais. A crise, mostra Sternheim, não é a da falta de amor, e sim a de não saber ser independente dos outros. Quase como se dissesse que o problema de toda a família é não aceitar o mundo e sua independência – a expectativas para com os outros é que frustra a vida de todos.

O filme peca quando quer ser ainda mais melodramático. Se toda crise do jovem e a questão moral se coadunam muito bem dentro do classicismo de Sternheim, o excesso torna-se apelativo ao final, extremamente desnecessário. A desilusão basta ao filme. Sternheim acaba pesando a mão no roteiro, buscando escancarar o drama, sem desenvolver propriamente, ou tentando, através do choque das revelações, potencializar a emoção. Nisso, perde justamente a força de até então – e afasta “Amor de Perversão” dos grandes filmes de Alfredo, ainda que seja um belo trabalho a ser conferido.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em janeiro 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

Aqui, Tarados!*
Direção: John Doo, Ody Fraga e David Cardoso
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

A Boca do Lixo sempre gostou dos filmes em episódios. A junção de três ou quatro curtas ou médias era uma ótima forma de comercializar o formato, obtendo lançamento nos cinemas. Produzidos, em geral, sob um tema bastante aberto que une as narrativas, os filmes em episódios da Boca do Lixo seguiam a mesma fórmula dos outros filmes, agilizando a produção e barateando os custos. Fosse durante o dito Cinema Marginal (“As Libertinas”/1968, “Audácia”/1969, “América do Sexo”/1969 etc), fosse no começo da produção de pornochanchadas (“Lua de Mel e Amendoim”/1971, “A Infidelidade ao Alcance de Todos”/1971). Se na seara das comédias eróticas, a Cinedistri parecia ter preferência pelo formato (“Cada um Dá o que Tem”/1975, “Já Não se Faz Amor como Antigamente”/1976 etc), na virada dos anos 1970 para os anos 1980, vários outros produtores se atinaram para as possibilidades de lucro do formato – vide A.P. Galante que volta ao filme de episódios em “As Safadas” (1982) e Sérgio Tufik que estreia nele, com “As Taras de Todos Nós” (1981), entre vários outros.

Talvez, porém, quem tenha se dado melhor produzindo filmes em episódios tenha sido David Cardoso. Cardoso, que começou como assistente de direção e fazendo pontas, até se tornar o principal galã da Boca – e não só de lá -, tem uma das trajetórias mais interessantes do cinema brasileiro. Saiu do Mato Grosso para se tornar o principal empreendedor cinematográfico de sua época, trabalhando também como diretor e produtor, em várias frentes, além de explorar sua faceta de galã e herói fílmico. Produziu cinco longas de episódios, todos roteirizados por Ody Fraga – “A Noite das Taras”/1980, “Pornô!”/1981, “A Noite das Taras II”/1982, “Caçadas Eróticas”/1984 e “Aqui, Tarados!”/1981.

“Aqui, Tarados!” reúne a mesma equipe do muito bem sucedido nas bilheterias “A Noite das Taras”: John Doo, Ody Fraga e David Cardoso na direção, Cláudio Portioli na fotografia e Jair Garcia Duarte na montagem. A principal diferença entre “Aqui, Tarados!” e os outros filmes de episódios feitos nessa época, na Boca do Lixo, seja a extrema ousadia em lidar com tabus sexuais. Se as taras dos demais filmes são, em geral, corriqueiras, banais até, “Aqui, Tarados!” não teme em ir para a obscuridade e trabalhar a morte e o sexo.

Como em todo filme de episódio, “Aqui, Tarados!” também é bastante irregular. O primeiro filme, “A Tia de André”, de John Doo, aposta no tabu do incesto, na relação libertina entre uma tia e seu sobrinho menor de idade que não se veem há muito tempo. Doo é hábil diretor e sabe extrair ao máximo a excitação latente da situação, jogando com a voz over do fluxo de pensamento de ambos os personagens. Consegue assim bons momentos de humor e de erotismo – com a já obrigatória cena de banho no chuveiro. O roteiro de Ody Fraga, porém, não ajuda, e o filme não passa de uma situação sem desenvolvimento. Esse é o mesmo problema de “A Viúva do Dr. Vidal”, dirigido pelo próprio Ody, ainda que se saia melhor. Nele, uma viúva resolve comemorar a morte do marido crápula. A celebração é regada a álcool e a sexo na presença do defunto do marido – em cima dele, inclusive – e já aponta a transgressão que viria no melhor filme dirigido por Davi Cardoso – e certamente um dos melhores filmes feitos na Boca do Lixo: “O Pasteleiro”.

“O Pasteleiro” traz John Doo como um pasteleiro de dotes culinários únicos, provedor do pastel especial em espeluncas, mas a preço de restaurante chique. Seu pastel, diz ele, não tem nada de especial; a carne que ele usa, sim, essa é especial. Numa noite de solidão, o pasteleiro convida uma garota de programa à sua casa. Não é o sexo a princípio que lhe interessa, mas sim a companhia. Conversam, serve chá. É um pasteleiro sensível, que tenta valorizar a moça acima de tudo. Se Cardoso acompanha com leveza o desenrolar da situação, sabe compor o tom de mistério, muito por conta da mise-en-scène (fotos de garotas penduradas na parede como um altar, a caracterização evidenciada do pasteleiro etc). Cardoso sabe trabalhar muito bem o ritmo dessa primeira metade do filme, sem se apressar numa potencial resolução e investida naquilo que dava público aos filmes da Boca, a nudez e o sexo.

Essa construção da situação e do personagem só exacerba a transgressão que vem por aí, quando num ataque, entre o psicótico passional e o calculista contido, o pasteleiro faz da bela Alvamar Taddei sua vítima. Seguem-se cenas de necrofilia, canibalismo, mutilações etc, no mais gráfico gore que se poderia imaginar para o contexto, num tom de extrema perversidade quase beirando o existencial – o que talvez se deva muito a Doo e à sua transformação durante o filme em termos de interpretação. Vale dizer que Doo era um grande diretor de filmes que trabalham com assassinatos e psicose – vide o belo “Ninfas Diabólicas” (1978) – e talvez tenha influenciado Cardoso na composição do filme.

“O Pasteleiro” daria um ótimo longa, se Cardoso tivesse persistido no roteiro. Havia espaço, ali, para desenvolver outras situações e poderia ter se dedicado mais tempo à preparação da carne especial do pastel, por exemplo – o cuidado da primeira metade é abandonado pelo tom operístico da transgressão de suas cenas. Como está, infelizmente, o filme ficou escondido, relegado aos mais atentos.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em novembro de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

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