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O Paraíso Proibido*
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

Dentro de uma vasta e diversificada obra como a de Carlos Reichenbach, repleta de grandes filmes, não parece à toa que um de seus filmes menores, o drama existencial “O Paraíso Proibido”, fique relegado como a mais um de seus produtos feitos na Boca do Lixo comercial. Utilizando-se dos preceitos necessários para emplacar enquanto projeto, como a nudez e o sexo, Reichenbach toma a liberdade de contar a história de um homem desiludido com o mundo contemporâneo, que cobra dele uma série de coisas nas quais ele não vê muito propósito.

Assíduo leitor e intelectual libertário por excelência, Carlão, como era conhecido, começou a trilhar os caminhos cinematográficos nos anos 60, ao estudar na Escola Superior de Cinema, das Faculdades São Luís, e, posteriormente, arriscar-se no cinema com os marginais “As Libertinas” (1968) e “Audácia!” (1969), feitos em episódios com outros diretores. São mais de dez anos até se estabelecer enquanto diretor com “A Ilha dos Prazeres Proibidos” (1979), produção de A. P. Galante, que estourou nas bilheterias – nesse período, além de despontar como diretor de fotografia e dedicar alguns de seus anos à publicidade, dirige três longas, “Corrida em Busca do Amor” (1971), “Lilian M.” (1974) e “Sede de Amar” (1978).

Com isso, Carlão ganhou passe-livre; era o porra-louca que deu certo, misturando o libertarismo anárquico com as exigências de mercado. Com o filho de Antonio Polo, Roberto, Reichenbach fez “O Império do Desejo” (1980), outro grande sucesso, uma comédia tresloucada e avacalhada, que versa sobre a liberdade sexual. Se até então, os filmes de Reichenbach, ainda que trafegassem em diversos gêneros, tinham a predominância da comédia, as coisas começam a mudar em 1981, com dois longas, “Amor Palavra Prostituta”, feito independentemente, e “O Paraíso Proibido”, produção de Roberto Galante. Em ambos os filmes, as requisições de mercado ainda se fazem presente, como a nudez e o sexo, mas o drama pesaroso toma conta. Seria essa linha que Carlão seguiria até o fim, sempre trafegando em outros gêneros em maior ou menor grau, salvas exceções (como o episódio “A Rainha do Fliper”, do longa “As Safadas”/1982, que é uma comédia típica).

“O Paraíso Proibido”, talvez por ter sua exibição menos difundida após a estreia comercial, permanece muito mais obscuro do que o par “Amor Palavra Prostituta”, tido como o prenúncio da verve melodramática de Reichenbach e precursor do cinema da alma, que o cineasta gostava de apregoar, e de seu cinema feminino. Igualmente belo, “O Paraíso Proibido” é certamente um filme a ser descoberto, trazendo diversas características presentes em outras de suas futuras obras.

A começar, pela forte influência do cineasta italiano Valerio Zurlini, de quem herda o melodrama desiludido, em especial de “A Primeira Noite de Tranquilidade” (1972), traço que permearia mais fortemente obras como “Anjos do Arrabalde” (1987), “Dois Córregos” (1999) e “Falsa Loura” (2007). “O Paraíso Proibido” é um filme sobre uma crise de meia-idade, sem os estereótipos e o caráter pejorativo da expressão. No longa, o radialista Celso Félix, interpretado pelo sempre ótimo Jonas Bloch, trabalha no litoral paulista, para onde se mudou após a separação com a esposa, buscando uma nova vida.

Quase como Carlos, em “São Paulo S/A” (1965), obra-prima de Luís Sérgio Person que Carlão idolatrava, que não consegue se encontrar em sua cidade após o boom industrial, Celso toma outro rumo: fugir de tudo aquilo. A fuga, para Carlão, pouco importa. A questão, para ele, é retratar seu comportamento ao estabelecer uma nova vida: no litoral, trabalhando numa rádio pequena com a qual ninguém parece se importar muito, saindo com várias mulheres, Celso parte em busca de sua liberdade plena. A tarefa é árdua, uma vez que a convivência numa sociedade depende de encontros, sejam de ordem pessoal ou profissional.

Essa é a encruzilhada de Celso: como encontrar a plena liberdade, se ele depende dos outros e outros dependem dele? A mulher aparenta o querer de volta, as mulheres ao seu redor querem mais que uma trepada; o chefe o quer como consultor. Nesse cenário, o personagem do amigo e mentor, Rivaldo, interpretado por Luiz Carlos Braga parece mais notável: radialista famoso e mulherengo, que também trocou São Paulo pelo litoral, mas com o objetivo de assentar a vida, passa a importunar Celso, quem reencontra após anos, para formarem uma sociedade e comprarem uma pequena rádio. Celso deve ter um papel fundamental no esquema: convencer o chefe ricaço a entrar na sociedade. Rivaldo é a própria figura do desespero frente à desilusão com a modernidade e a cidade grande. Cansado de trabalhar e não sair do lugar, sem prosperar ou encontrar qualquer conforto, apela para a premissa burguesa do empresário. Isso, em parte, para manter a mulher por quem se apaixonou, uma aproveitadora. E Rivaldo aceita. A desilusão de Celso só cresce nesse propósito, porque não quer aceitar o que lhe contraria, mas não vê saída – e os princípios já não mais existem.

Para retratar esse conto do desconsolo, Reichenbach dispensa suas tradicionais inversões e invenções narrativas, seguindo um tratamento bastante linear. Tal tratamento parece ser, para Carlão, o mais adequado aos seus filmes mais caros e pessoais, referentes seja à sua memória, seja ao seu âmago – como se isso bastasse para deixar suas histórias verdadeiras (e bastam!). O modelo é mais adequado à produção da Boca do Lixo, ainda que Reichenbach seja bastante contido na exploração do corpo nu. Mesmo com nus frontais, o diretor filma apenas uma transa por atriz, de maneira bastante econômica – restringindo o sexo apenas ao essencial, em uma época em que o sexo explícito começa a ganhar espaço.

O sexo, em geral, para Reichenbach, tem uma função narrativa bem delineada, a de expor as condições internas de seus personagens (sejam sentimentos ou crenças, etc). Em “O Paraíso Proibido”, o sexo demonstra a evolução do personagem, da despreocupação ao incômodo, do desconforto à desforra. Para Celso, a relação sexual surge quase como uma tentativa de preencher o vazio da tão desejada liberdade plena e a inevitável relação com o mundo contemporâneo só desperta nele mais desconforto e, consequentemente, mais desejo. É um ciclo vicioso, mas nada falacioso.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em fevereiro de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

Como Consolar Viúvas*
Direção: J. Avelar (pseudônimo de José Mojica Marins)
Brasil, 1976.

Por Gabriel Carneiro

José Mojica Marins entrou para a história do cinema brasileiro como o sujeito a bancar o gênero horror em terras tupiniquins, realizando obras-primas diversas nessa seara, e por inventar um personagem popularíssimo no imaginário brasileiro, o Zé do Caixão. Seu auge esteve nos anos 1960, quando dirigiu, entre outros, “À Meia-Noite Levarei sua Alma” (1964), “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1966) e “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968). Em 1969, dirigiu sua obra máxima, o horror psicodélico “Ritual dos Sádicos”. Interditado pela censura, o longa só seria lançado em 1983 sob o título “O Despertar da Besta”. A perseguição da censura para com Mojica foi crucial para seu destino. Os produtores, não confiantes com o que poderia acontecer aos seus novos filmes, pararam de bancar as fitas de horror do cineasta. Para sobreviver, Mojica teve que investir nos mais diversos gêneros cinematográficos, fazendo filmes de encomenda. Fez, assim, filmes de aventura (“Sexo e Sangue na Trilha do Tesouro”/1970), faroestes (“D’Gajão Mata para Vingar”/1972), e comédias eróticas.

Como Consolar Viúvas é sua segunda e última comédia erótica. Precedida por “A Virgem e o Machão” (1974), Mojica só voltaria à comédia em seus filmes de sexo explícito. Ambos os filmes são assinados como J. Avelar, pois o produtor Augusto de Cervantes achava o nome José Mojica Marins vinculado demais ao Zé do Caixão e que isso poderia prejudicar a carreira das comédias.

Apesar de Como Consolar Viúvas ter todos os elementos de uma típica pornochanchada, com direito a nudez, insinuação sexual, gags diversas sobre a questão sexual, trama rasteira e muitas vezes inverossímil, etc, etc, o filme apresenta muitas característica do cinema de horror, tão íntimo à Mojica. A começar pela trama: bon-vivant decadente e endividado resolve dar um golpe em três irmãs viúvas ricas, que perderam seus respectivos num acidente de avião; para tal, se fantasia de cada marido e visita cada uma delas pedindo dinheiro – só não contava com a fúria de seus fantasmas.

O principal trunfo do longa de Mojica parece ser justamente esse: sua sapiência em trabalhar o horror em diferentes registros. Do apavorante, em seus filmes legítimos do gênero, ao paródico, no caso desse Como Consolar Viúvas, através do uso dos clichês do som e da música, de imagens distorcidas típicas de produções buscando criar uma atmosfera fantástica, e da presença do sobrenatural na criação de imagens cômicas (o ataque do vibrador assassino, por exemplo). O jogo feito por Mojica confere ao longa uma classe à produção deveras barata.

A comédia faz-se presente também nas auto-referências que o diretor faz, especialmente nos diálogos. Em determinado momento, acusam uma das viúvas, ao abrir a porta de roupas íntimas: “Parece atriz de pornochanchada”. O riso só não é mais fácil quando falam que os mistérios que permeiam as viúvas são coisas de “filme do Zé do Caixão”.

Fora do escopo da construção da comédia, mas não totalmente, é interessante notar a defesa da liberdade sexual dos personagens do filme e de uma certa libertinagem sadia, que Mojica imprime no roteiro de Georgina Duarte. Há, no longa, um conflito de gerações, que opõe pai e irmã e as filhas. Os primeiros, de uma linhagem retrógada, defendem o luto das filhas por tempo indeterminado – e isso significa a clausura delas na casa -, bem como discriminam qualquer interesse sexual que possam exprimir; as segundas, apenas querem aproveitar a jovialidade que ainda possuem. E o curioso é que as proibições são os fatores causadores de todas as enrascadas por vir. É aquela coisa: se as viúvas não estivessem contidas, jamais se entregariam ao que julgavam ser o fantasma do marido e não engravidariam ou perderiam dinheiro.

A outra questão está mais ligada ao imaginário da população brasileira. Aquiles, o decadente e endividado, é um típico vigarista. O que o move é enganar o próximo, de maneira desonesta, para seu próprio bem, levando uma boa grana nisso. Para o vigarista ser bem sucedido, alguém tem de cair em seu conto do vigário. Aí está a chave do filme, que lhe confere sua leveza e levanta os cabelos dos afeitos às explicações mínimas e completas. As viúvas caem em seu conto. Por quê? Oras, porque não fazem sexo há muito tempo e estão desesperadas pelo gozo, nem que isso signifique acreditar nos fantasmas dos maridos, pedindo coisas absurdas (p. e. levar uma quantia ‘x’ de dinheiro para um mendigo, para que uma questão fiscal no nome do defunto seja resolvida), apenas para que possam voltar a fazer sexo. É uma ideia muito bem trabalhada pelo historiador José Augusto Dias Jr. em seu livro “Os Contos e os Vigários”, de que quem cai no conto do vigário só faz isso pois acha que está tirando proveito da situação em detrimento de algo que não seria assim tão fácil – como conseguir sexo mesmo com a enorme tutela do pai e da tia. Mojica, claro, não está nem aí pra isso. Porque, as viúvas, enquanto fazem sexo, pouco se importam com quem lhes proporciona felicidade. Ou seja, a questão vai além de serem enganadas e fica na intransigência do prazer momentâneo.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em janeiro de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

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