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Padre Pedro e a Revolta das Crianças*
Direção: Francisco Cavalcanti
Brasil, 1984.

Por Gabriel Carneiro

Padre Pedro e a Revolta das Crianças é mais um daqueles filmes inacreditáveis que só a Boca poderia ter produzido. Aproveitando-se do sucesso com a criançada, Pedro de Lara, então jurado do Show de Calouros do SBT, escreveu, produziu e protagonizou essa história de aventura, em que um padre turrão e mal-humorado enfrenta um milionário inescrupuloso e sem coração que domina a cidade. Pedro, claro, faz o padre. O controlador da cidade é José Mojica Marins, numa caracterização que, só não é idêntica ao mítico Zé do Caixão, porque seu nome é Rodrigo Napu. É, talvez, o que mais próximo de filme infanto-juvenil a Boca tenha feito.

Padre Pedro e a Revolta das Crianças apresenta uma típica trama maquiavélica, do bem contra o mal, um tanto educativa e rasteira, com personagens facilmente identificáveis pelas vestes, com a inserção de crianças buscando uma ponte com seu público-alvo, além de alguns personagens um tanto infantilizados e mensagens cristãs. Era uma alternativa da Boca à crescente e cada vez mais dominante produção de filmes de sexo explícito.

O diretor, Francisco Cavalcanti, dono de uma das obras mais prolíficas da Boca, continuada mesmo após seu fim, foi sinônimo de filmes policiais ou de horror, como “O Porão das Condenadas” (1979), “Os Violentadores de Meninas Virgens” (1983), “A Hora do Medo” (1986) e “Horas Fatais (Cabeças Trocadas)” (1986), entre muitos outros. Cavalcanti não é muito afeito a requintes. Seu cinema prescinde disso. É um diretor da crueza formal e da violência humana. Mais próximo, talvez, dos exploitation gringos que tivemos em nosso cinema.

É curioso ver Cavalcanti na direção desse Padre Pedro e a Revolta das Crianças em relação à sua filmografia, ainda que o filme pareça fazer sentido nela. Afinal, é um filme sobre a violência, mas tratado em tom muito mais leve e nada gráfico. Rodrigo Napu é um sujeito capaz de fazer de tudo para manter o mundo ao seu redor como gosta, independente de quem tenha que matar etc. E é um homem contrário à igreja e à religião católica. É um opressor, assim como boa parte dos personagens de Cavalcanti. Certo que, no filme em questão, há também Padre Pedro, esse homem de fé e simples, que preza apenas pelo bem e luta pela saúde das criancinhas.

O próprio Mojica já havia feito, fora dos esquemas da Boca, um filme de cunho religioso católico, Meu Destino em Suas Mãos (1963), um bom drama doméstico. A Boca, por sua vez, investiu em alguns filmes religiosos, mas, em geral, espíritas, afiliando-se ao gênero horror, como os kardecistas Joelma 23º Andar (1979), de Clery Cunha, e O Médium – a verdade sobre a reencarnação (1980), de Paulo Figueiredo. Padre Pedro e a Revolta das Crianças também tem um discurso doutrinário sobre a religião, acerca da necessidade da crença em Deus, ainda que suas mensagens se confundam mais com um ideário da moral e do bom senso.

É um filme cru também, sem firulas e inventividades. Cavalcanti é direto, tanto em termos narrativos quanto em enquadramentos. Não lhe interessa filmar de modo a ressaltar a composição do quadro, e sim de modo a evidenciar o que propõe a história. Padre Pedro e a Revolta das Crianças é mais rasteiro em termos de roteiro, parece, porém, por conta do desejo em opor, sem margens para o contrário, como o bem e como o mal se comportam. É a lógica usada até hoje por muitos filmes infanto-juvenis que se preocupam com o educar.

Um filme infanto-juvenil da Boca do Lixo, porém, é bastante distante da imagem que o público tem dos filmes infanto-juvenis em geral, especialmente dos norte-americanos da Disney e afins. Mesmo dos brasileiros, ainda que, para o padrão de hoje, Trapalhões e Mazzaropi, que faziam maravilhas com esse público-alvo, talvez fossem considerados deveras politicamente incorretos. Se a violência e a agressão estão em Padre Pedro e a Revolta das Crianças, em condições mínimas, o sexo está completamente ausente. Mas não deixa de ser uma visão curiosa para um gênero fílmico. Apostando na inocência, Cavalcanti cria uma aventura um tanto lúdica sobre o coronelismo, simplista e acessível, e bastante divertida.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em julho de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

O Olho Mágico do Amor*
Direção: Ícaro Martins e José Antonio Garcia
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

(pode conter spoilers)

O cinema paulista dos anos 1980 ficou marcado por uma renovação em seus quadros. Com a Boca do Lixo caminhando para o cinema de sexo explícito – sem volta, a partir de 1984 -, coube a uma série de jovens estreantes ocupar o mercado – além, claro, de alguns notáveis cineastas egressos de outros períodos. Eram jovens, em geral, vindos da universidade, estudantes de cinema, fato meio raro – parte da primeira geração da Boca havia cursado a Escola Superior de Cinema, das Faculdades São Luís, mas todos abandonaram no meio. Diversos estudantes da ECA/USP estrearam como diretores em longas-metragens nos anos 1980.

Antes da Boca se entregar completamente ao cinema de sexo explícito, dois uspianos aproveitaram-se dos meandros do sistema para fazerem seus filmes – quebrando bastante a lógica seguida pelos ex-alunos, que preferiam manterem-se distantes da Boca quando encaravam a direção. Contemporâneos de ECA, mas amigos apenas depois do fim da faculdade, Ícaro Martins e José Antonio Garcia buscaram em Adone Fragano, produtor da Boca, dono da Olympus Filmes, uma forma de transformar ideias em filmes. A Boca, apesar de trabalhar com baixos orçamentos e uma série de contrapartidas, era a melhor forma de se conseguir levantar dinheiro para fazer um longa sem depender das migalhas que a Embrafilme oferecia na época ao cinema paulista. Martins e Garcia, proporiam, de certa forma, dentro daquele esquema, um novo olhar para o fazer cinema na Boca.

A dupla estrearia com O Olho Mágico do Amor, em 1981, e ainda faria, com a Olympus, “Onda Nova” (1983) e “Estrela Nua” (1985), antes de se separarem. Garcia fez, solo, “O Corpo” (1991) e “Minha Vida em Suas Mãos” (2001) – preparava seu sexto longa quando sofreu um infarto fulminante, em 2005. Martins codirigiu com Helena Ignez “Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha” (2010).

Atípico à época para o cinema da Boca, a dupla chamou bastante atenção da crítica com sua estreia, um filme que subverte algumas das principais convenções do cinema erótico praticado por aqui, sem se afastar completamente a ponto de perder seu público – similar ao que outro estreante faria no mesmo ano, Guilherme de Almeida Prado em seu “As Taras de Todos Nós”. De fato, estão lá a nudez e o sexo em abundância, uma história que envolve desejos etc. Martins e Garcia, porém, assumem o olhar feminino e fazem de seu filme um libelo à liberdade sexual da mulher – busca constante, aliás, nos filmes da dupla. No longa, a jovem Vera (Carla Camurati) parte em busca de seu primeiro trabalho, como forma de sair de casa. Consegue um emprego de secretária da Sociedade Paulista de Amigos da Ornitologia, localizada na R. do Triumpho, coração da Boca – a locação foi o escritório redecorado de Adone, inclusive. Lá, encontra um orifício na parede, que dá para o apartamento de uma prostituta (Tânia Alves). Nos momentos de ausência do diretor da sociedade, Vera se descobre e se desprende do papel de mulher oprimida – pelos pais, pelo namorado, pela sociedade. Cada homem que passa, um fetiche diferente.

Mesmo, eventualmente, tendo de lidar com a truculência machista e ignorante do cafetão, Vera encontra no fascínio com a figura da prostituta e na fantasia que emerge disso sua liberdade. O voyeurismo no filme, assim, ganha um novo contexto para além da invasão de privacidade. O que Vera observa se espelha em sua vida e em seus desejos – não importa o que lhe acontece enquanto não vislumbra o olho mágico, a fantasia lhe permite outras experiências; experiências que suplantam qualquer outra coisa.

Nessa trajetória um tanto singular, vale destacar o caráter lúdico escolhido por Martins e Garcia em vários momentos, seja a cantoria de Cida Moreira na casa, seja a fuga do bandido – com sua iluminação completamente artificial digna do neon-realismo. Em especial, porém, no encontro entre as duas moças do filme, num cenário de fundo infinito, como se uma festa acontecesse. Ali, pouco importa se a ação – que quebra completamente a imersão no longa – é fruto da imaginação da protagonista ou se é apenas uma liberdade representacional de um fato real do filme. Tudo aponta para uma direção: sempre em frente, sem remorsos.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em maio de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

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