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Fuscão Preto*
Direção: Jeremias Moreira Filho
Brasil, 1982.

Por Gabriel Carneiro

Jeremias Moreira Filho dirigiu poucos longas-metragens durante sua ampla trajetória com o audiovisual. São apenas quatro, três deles dentro da Boca do Lixo. Curta, porém marcante trajetória. Ao se especializar em filmes com temática caipira, Jeremias conquistou um nicho e fez muito sucesso, ao menos com seus dois primeiros longas, o muito bom “O Menino da Porteira” (1976) e sua obra-prima “Mágoa do Boiadeiro” (1977), ambos com o cantor Sérgio Reis como protagonista e inspirados em músicas caipiras muito conhecidas do repertório popular. Seu terceiro longa, “Fuscão Preto”, tardou. Adaptado de um hit da época, interpretado por Almir Rogério, também protagonista do filme, “Fuscão Preto” foi um fracasso. Lançado quando a música já havia saído das paradas de sucesso, com forte competição no mercado por conta dos filmes de sexo explícito, o longa foi o testamento cinematográfico de Jeremias por muito tempo – até voltar com o remake de “O Menino da Porteira” em 2009, estrelado, dessa vez, pelo cantor Daniel.

“Fuscão Preto”, a música, não fala do universo caipira. Muita por conta disso, o longa seja o mais afastado da temática rural, dentre os realizados por Jeremias, ainda que o diretor tenha feito um esforço bem sucedido inserindo-o nesse mundo. Uma garota, filha de um fazendeiro, está prestes a casar com o filho do prefeito, o grande latifundiário da região. A chegada de um domador de cavalos e um fuscão preto que a começa a perseguir relativizam o futuro da moça, interpretada pela então futura apresentadora infantil Xuxa, em seu segundo filme lançado – Xuxa também renega a película assim como o faz com “Amor Estranho Amor” (1982), de Walter Hugo Khouri, mesmo estando mais vestida do que em seus programas voltados aos baixinhos nos anos 1980.

O afastamento mais amplo do universo caipira permite a Jeremias, um dos grandes contadores de história egressos da Boca, abraçar outros gêneros fortemente, em especial o filme de ação. O tal fuscão preto é uma máquina violenta, que persegue, atropela, invade casas e ameaça muito a filha do fazendeiro, ainda que o filme fuja de qualquer demonstração gráfica de violência.

Dentro da seara rural, o filme volta a tratar um tema caro para Jeremias: o latifundiário oportunista que quer tirar vantagens dos outros. No longa, o prefeito influencia o filho a conquistar e a se casar com a filha do fazendeiro, de olho nas terras dele. Sua ideia é transformar as pastagens e a criação de cavalos numa monocultura de cana de açúcar, visando a explorar o combustível álcool. Comum à temática rural, o capitalismo predatório é o grande inimigo do povo da terra.

“Fuscão Preto” trabalha também, por outro viés, o confronto entre progresso/modernidade e tradição/paz, já presente em “Mágoa do Boiadeiro”. Em “Fuscão Preto”, a modernidade ganha uma representação material palpável, uma máquina, um carro. Se Jeremias opõe a tradição e o progresso de maneira discursiva na premissa do álcool como o futuro – mesmo que isso custe devastar terras com a monocultura e usar pessoas em prol do benefício próprio -, é no fuscão preto do título que isso fica mais claro. O carro simboliza o futuro, a modernidade, em oposição ao cavalo, como meio de transporte. Se o vilão da história é o prefeito e seu filho, questão óbvia para o espectador desde o início, Jeremias sabiamente resolve relativizar o embate. Ele sair de cena enquanto par de Xuxa é só questão de tempo. Isso importa menos ao filme.

O conflito se dá, efetivamente, entre o domador de cavalos (Almir Rogério) e o fuscão preto. São as duas figuras do filme que, aos poucos, seduzem Xuxa. O primeiro, pelo seu fino trato com os animais e pela delicadeza; o segundo pelo fascínio enigmático que exerce sobre a moça, de maneira um tanto inconsciente. Nesse caso, não há um maniqueísmo óbvio, como poderia se esperar, não há a figura maligna. Jeremias não escolhe caminhos fáceis, nem entrega um único ponto de vista. Sabe como conduzir dramaturgicamente sua história e suas possibilidades, acenando para surpresas potenciais. Menos importa, ali, a resolução do que o embate.

Infelizmente, “Fuscão Preto”, fracasso de público e com crítica inexistente, ficou no lodo, marcado como um dos filmes tranqueiras da Xuxa antes de ficar realmente famosa. A se descobrir.

Apêndice, CONTÉM SPOILERS:

O grande trunfo do filme talvez esteja em como o cineasta opta por terminar seu filme. Em nenhum momento, revela o motorista do fuscão preto, se é que há um, como não escolhe o fim óbvio, em que Xuxa e Almir Rogério terminam juntos. Cada um segue seu caminho, ele de volta ao passado, e ela para um futuro incerto. O risco colabora, assim, na construção da ambiguidade da transição campo/cidade, coisa que o filme rural raramente faz. Ponto pra ele.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em abril de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

As Deusas*
Direção: Walter Hugo Khouri.
Brasil, 1972.

Por Gabriel Carneiro

Mulher deprimida vai, com o marido, para a casa de campo de sua psicóloga, por recomendação da própria, com o objetivo de encontrar a paz em meio à natureza. Tudo parece normal, mas a angústia dessa mulher é tão grande, que não aguenta, telefonando desesperada para a terapeuta e clamando sua ida ao refúgio. Envolto por uma obscuridade, o ambiente faz a psicóloga sucumbir a uma série de tentações e sentir as perturbações de sua paciente.

Walter Hugo Khouri, ao longo de mais de 50 anos de carreira no cinema, passou incólume por todos os fazer cinema em São Paulo, da Vera Cruz à produção independente, da Boca do Lixo, à Embrafilme e à Retomada. Incólume porque, mesmo trafegando em diferentes formas de se produzir, nunca perdeu sua autenticidade e sempre manteve seu projeto de cinema intimista e existencial, fossem em dramas, suspenses, filmes de horror ou comédias. O preâmbulo armado por Khouri em As Deusas, que inicia este texto, é exemplo perfeito disso. Egresso do cinema sofisticado urbano feito em São Paulo nos anos 1960, após estourar em termos de público e conseguir prestígio internacional (dois filmes dos nove filmes anteriores competiram por uma Palma de Ouro em Cannes, a saber, “Noite Vazia”/1964 e “O Palácio dos Anjos”/1970), Khouri ingressa no cinema das Boca do Lixo justamente com esse As Deusas, primeira parceria com a Servicine de Alfredo Palácios e A. P. Galante.

A Servicine sempre teve a pretensão de fazer público, de ganhar dinheiro com o que produzia, daí baixíssimos orçamentos, temas populares, fórmulas exploradas à exaustão, etc, etc. Khouri era um sujeito que raramente trabalhava temas estritamente populares – seus personagens de classe média trafegam por espaços, situações e sensações que dificilmente eram vistos na Boca do Lixo -, nunca entregando tudo facilmente, ainda que tenha tido grandes sucessos de público. É impressionante pensar em As Deusas como um filme da Boca, mesmo que seja um típico Khouri, porque o cineasta parece radicalizar algumas de suas experiências estético-narrativas. Mestre na criação de atmosfera, o diretor calca seu filme praticamente nesse elemento, de certa forma, abrindo o precedente para os filmes de horror que dirigiu, “O Anjo da Noite” (1974) e “As Filhas do Fogo” (1978), em que o verbo é deixado de lado em favor do abismal e do efeito do ambiente nas ações e nos sentimentos de seus personagens.

Ainda que exista, em As Deusas, breves diálogos explicativos sobre a psique da protagonista, isso está longe de promover a insanidade contagiosa que vemos no filme, quando a personagem de Lilian Lemmertz – impecável – corre desesperada pelo bosque da casa, delirando, com uma câmera explosiva, andando em círculos. Essa capacidade de narrar uma história que Khouri tinha era sua grande qualidade. Notável em saber o que fazer com a câmera, era grande diretor de atores, sabendo exatamente o que extrair deles. Bastam um olhar de Lemmertz, de Mário Benvenutti (o marido) ou de Kate Hansen (a terapeuta) para a história evoluir.

A capacidade expressiva dos atores constrói, ao lado da câmera e a trilha do habitual colaborador de Khouri, Rogério Duprat, a atmosfera de As Deusas. No filme, há uma linha muito tênue entre a loucura e a sanidade, entre a sedução e o assédio, entre o prazer e a dor; tudo é jogo. Ali, tudo misturado, existe uma consciente liberdade dada ao espectador de fazer o juízo que lhe for, de lhe provocar aonde lhe diz mais, tamanha a ambiguidade provocada por Khouri – que casa perfeitamente com o tema retratado no filme. Mais: sem propor qualquer explicação racional. Quanto mais os personagens se impregnam por aquela dualidade, em que a clareza de pensamento ou mesmo de ações deixa de existir, mais se prendem a uma realidade, seja ela qual for, a ponto de ser algo quase compulsivo, numa espécie de buraco negro existencial.

Khouri ficou marcado como um sujeito que fazia pornô chic, por mais errado que isso seja. Era o sujeito que fazia filmes com um erotismo latente, em que o sexo era uma exasperação da liberdade corporal, nada vulgar, em ambientes de classes mais abastadas. Isso muito derivado das questões existenciais tão caras a Khouri e que tanto identificavam essa classe ora alienada, ora despropositada, que não sabia muito para onde ir. As reminiscências deixadas pelo cineasta em seus filmes, especialmente nesses em que a atmosfera reina frente ao verbo e que o ambiente tem um papel tão opressor ao âmago do individuo como as dificuldades vistas nos filmes de cunho social, demonstram muito mais do que a maestria em filmar, permitem aos espectadores investigarem suas próprias personas a partir do que o filme propõe, para o lado que tender sua interpretação.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em março de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.

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