Duas Estranhas Mulheres*
Direção: Jair Correia
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

Por muito tempo, pensou-se que Duas Estranhas Mulheres, estreia na direção e no roteiro do então montador Jair Correia, estava perdido. Em meados do ano passado, o Canal Brasil trouxe novamente o filme à vida, em bela cópia. Dividido em dois episódios, Diana e Eva, Duas Estranhas Mulheres foi premiado como melhor direção e melhor atriz (Patrícia Scalvi) pela APCA, em 1983. Típico filme de gênero, com forte acento psicológico na trama, o longa de Correia aponta para um diferente caminho aos filmes usuais da Boca do Lixo, numa época em que a produção parecia saturada, trazendo, porém, ainda elementos comuns à Boca, como nudez e insinuação sexual.

Tanto Diana quanto Eva trazem personagens femininos à mercê de homens, esses sim frutos de uma estranha natureza psicológica. Conhecemos Diana já num interrogatório, tentando explicar porque matou seu marido. Num bar, vê seu marido, Raul. Mas não é Raul, e sim Otávio, uma figura idêntica fisicamente a Raul, um sujeito agressivo e opressor. Atormentada, confronta ambos, que negam ter conhecimento de qualquer coisa do gênero. Diana então começa uma relação paralela com Otávio, que se revela doce e respeitador. Eventualmente, vai à loucura tentando se relacionar com as duas faces da mesma moeda.

O episódio Diana é quase um O Médico e o Monstro moderno e brasileiro. Raul/Otávio alternam entre o grotesco e o gentil, sem mudar, porém, de fisionomia. A caracterização reflete um distúrbio de personalidades: a mera fala possibilita a identificação de qual face está em domínio. Diana, que se apaixona por Otávio, se vê num fogo cruzado, especialmente quando Raul passa a desconfiar de um amante. Jair Correia trabalha com o jogo das personalidades num crescendo de tensão, que permite à sua protagonista adentrar nessa loucura – muito favorecido pelas belas atuações de Patrícia Scalvi e Hélio Porto.

Eva vai mais além, no sentido de traduzir o psicológico para cinema. China (John Doo), um vendedor, sonha sobre Eva (Fátima Celebrini), com quem vai para a cama – transferindo a situação do sonho, inconscientemente, para a realidade, com sua esposa (Misaki Tanaka). Mas não é o corpo de China que vemos no sonho, e sim o de um barbudo ruivo (Vandi Zaquias). No dia seguinte, China pega a estrada e encontra, no meio do caminho, Eva. Tudo para China parece muito familiar, sem conseguir diferenciar o sonho que vimos com uma possível memória. O episódio aproxima-se, dessa forma, da narrativa do sonho, apresentando personagens em diferentes corpos, descontinuidade narrativa, e ligações mirabolantes entre os principais eventos.

É em Eva que fica claro um aspecto forte no cinema de Jair Correia: o caráter não-explicativo dos acontecimentos fantásticos ou extraordinários de seus filmes. Tanto em Diana quanto em Eva, Correia não demonstra qualquer insinuação de explicar as situações, seja a possível dupla-personalidade de Raul/Otávio – que também poderia ser um sonho, uma ilusão de Diana -, seja a transmutação de China no barbudo ruivo. Fator em consonância com a lógica do embaralhamento da psique proposto em seu cinema – nunca sabemos se a imagem que vemos são os fatos da narrativa ou a interpretação/imaginação de seus personagens.

Correia, que começou como assistente de direção e de montagem de Egídio Eccio, em 1976, ainda realizaria os longas Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor (1982), ao lado de Hélio Porto, e Shock! (1983), o primeiro e um dos únicos representantes dos slashers no Brasil, antes de se dedicar às artes plásticas e ao teatro em Ribeirão Preto Neles todos, a não-explicação e a manutenção do mistério e da incerteza é quase uma tônica – com exceção, talvez, de Retrato Falado, em que não teve o controle sobre o material final.

Importa, afinal, para Correia, o adensamento nas personalidades, a tentativa de compreensão do estado emocional. Por isso, o uso frequente do zoom psicológico, aquele que se aproxima aos poucos do personagem, focando em seu rosto expressivo, quase como se buscasse adentrar sua mente e exprimir seus sentimentos – tipo de zoom muito frequente, por exemplo, no cinema de Walter Hugo Khouri.

Duas Estranhas Mulheres ainda antecipa outro ponto forte do cinema de Jair Correia: em seus três longas, a opressão frente à figura da mulher é sempre muito forte. Não à toa, Correia, em geral, escolhe as mulheres como centro de seu cinema, assumindo o lado delas na história – ainda que características tidas hoje já como manifestação de machismo possam ser percebidas.

Com produção de Cassiano Esteves, Duas Estranhas Mulheres rendeu uma boa grana, possibilitando a Jair Correia emplacar outros projetos dentro da Boca, ainda que seus filmes e sua figura pareçam não se ligar tanto ao cinema da região. Pouco importa, porém.

*Publicado originalmente no site Cinequanon, em março de 2014, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.