Iracema, a virgem dos lábios de mel*
Direção: Carlos Coimbra
Brasil, 1979.
Por Gabriel Carneiro
Em meados dos anos 1970, o cinema brasileiro, muito por conta de uma política da Embrafilme, resolveu levar às telas os grandes clássicos da literatura romântica brasileira do século XIX. José de Alencar, o mais notório autor do movimento, foi imensamente privilegiado nesse recorte. Filmes como “A Lenda do Ubirajara”, de André Luiz Oliveira, e “Senhora”, de Geraldo Vietri, tiveram companhia da Boca. Se um elegante “Lucíola – O Anjo Pecador”, de Alfredo Sternheim, feito lá, teve todo o requinte de uma grande produção, os indianistas “O Guarani”, de Fauzi Mansur, e “Iracema, a virgem dos lábios de mel”, de Carlos Coimbra, abusaram do que a Boca mais e melhor oferecia: belas mulheres nuas – sem ter que apelar para desculpas esfarrapadas ou eventuais moralismos no retrato do indígena.
E “Iracema”, pois bem, só existe por conta de Helena Ramos, a grande musa da Boca, em um de seus papéis mais famosos, como a índia-título, virgem dos lábios de mel e dos cabelos mais negros do que a asa da graúna, desfilando nua no filme inteiro. Vá lá, é certo, Helena não engana ninguém, branca que é, com pele inteiramente tingida, para parecer mais morena – não só nela, como em boa parte dos índios do filme.
Carlos Coimbra, o diretor, foi um dos principais artesões do cinema paulista. Começou como assistente e logo estreou na direção, com “Armas da Vingança” (1955), ao lado de Alberto Severi, assinando também o roteiro. Embrenha-se nos faroestes e torna-se um dos grandes nomes do ciclo de cangaço, com filmes como “A Morte Comanda o Cangaço” (1960), “Lampião – O Rei do Cangaço” (1965) e “Corisco – O Diabo Loiro” (1969). Sua carreira é impulsionada pela parceria com Oswaldo Massaini, da Cinedistri, a partir de “Lampião”. O cineasta ainda passeou por outros gêneros, como a comédia (“Se Meu Dólar Falasse”/1970), o drama (“Madona de Cedro”/1968), o suspense (“O Signo do Escorpião”/1974) e o épico histórico (“Independência ou Morte”/1972).
Coimbra raramente abusava do sexo ou da nudez das atrizes em seus filmes, era o sujeito dos filmes classudos, de estima. “Iracema” tem a nudez abundante e a conotação sexual, mas não parece seu foco. Tampouco lhe interessa um olhar social ou antropológico do índio brasileiro, nem aventa uma postura crítica à idealização romântica do mito fundador brasileiro, como fizeram André Luiz Oliveira, no já citado “A Lenda de Ubirajara”, ou mesmo Nelson Pereira dos Santos, em “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971), entre outros. “Iracema, a virgem dos lábios de mel” não trabalha sequer com a ideia de identidade nacional, isso não lhe é uma questão – como era ao romance. Coimbra é um cineasta de grandes narrativas, de grandes histórias, do extraordinário. E é isso que lhe interessa.
As desventuras do romance impossível entre o português Martin e a índia Iracema logo tomam a atenção dos corpos – importa-lhe, ali, a tragédia do amor, o preconceito da união do branco com índio, os laços formados por obrigação e não por gosto, a rivalidade etc.
Coimbra aprendeu a filmar vendo os melhores do cinema clássico, com pleno domínio da narrativa linear, gosto por planos abertos e movimentos suaves, câmera e montagem invisível etc. O impacto negativo não vem, no início, portanto, pela maneira como usa o nu, e sim pela representação caricatural que encontramos seus personagens, seja o português com figurino de loja de fantasias de quinta, seja a índia pintada e histriônica de Helena – grande atriz que parece não saber o que fazer no filme. Ali, o didatismo em contar a trama de Alencar ao público prende o filme a uma sucessão de eventos desnecessários.
Uma vez que as muitas explicações cessam, Coimbra parece encontrar o caminho. É quando pode se soltar e dar o tom épico que tanto gosta – certo que, vez ou outra, algumas escolhas parecem duvidosas, como o uso de desenhos na cena da batalha. Quando romance e a tragédia ganham novas proporções, a câmera fica ainda mais exuberante. Coimbra era um desses raros cineastas que sempre sabiam aonde colocar a câmera, não importasse o filme que fizesse e as múltiplas implicações (1) que ele tivesse. Não à toa, escolheu o litoral cearense de fato para filmar sua história. Sua câmera, sempre suave, passeia pelas paisagens, flagra momentos e assiste de longe aos eventos. Ela nunca interfere, sempre observa. Talvez por isso o papel tenha dado tanta fama a Helena, mesmo que seja uma de suas piores atuações – ela, como o filme, parece encontrar o tom depois de um bocado de tempo -, porque, mesmo cheia de tinta, raramente esteve tão bela, graças, provavelmente, às lentes de Coimbra.
(1) Para além das qualidades de cineastas, vale mencionar que Carlos Coimbra esteve envolvido em um bocado de polêmicas. Seu “Independência ou Morte”, lançado nos 150 anos de independência do Brasil, foi acusado não só de compactuar como de ser uma propaganda explícita ao Regime Militar, em sua fase mais violenta, à época. “Iracema”, por sua vez, foi acusado de ser uma resposta patriótica ao “Iracema, uma Transa Amazônica” (1976), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, filme que foi proibido no Brasil por sua verve subversiva. Houve quem dissesse, inclusive, que o próprio Coimbra influenciou na censura para poder promover seu longa.
*Publicado originalmente no site Cinequanon, em setembro de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.