Liliam, a suja*
Direção: Antonio Meliande
Brasil, 1981.
Por Gabriel Carneiro
Serial killers sempre foram muito populares, na vida e nos filmes. Vide a exploração de certas figuras pela mídia (no Brasil, nomes como Chico Picadinho, Maníaco do Parque, entre outros, fizeram a festa nas manchetes de jornais popularescos). Não à toa, o cinema se beneficiou desses contos de horror da vida real – em que o sobrenatural só dá o ar da graça para apimentar as coisas -, no mundo inteiro e também no Brasil, ainda que poucos filmes tupiniquins do gênero sejam conhecidos. A Boca, como todo bom celeiro de produção exploitation, foi, possivelmente, quem mais produziu o subgênero. Filmes como “O Estripador de Mulheres” (1977), de Juan Bajon, “Solo de Violino” (primeiro episódio de “A Noite das Taras 2”, 1982), de Ody Fraga, “O Matador Sexual” (1979), de Tony Vieira, e mesmo “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla, exploraram bem a condição.
Subgênero, em geral, dominado por protagonistas homens, os filmes de serial killers trazem a lógico dos casos reais: similaridades entre as pessoas assinadas (físico, profissão etc) e similaridades no processo de assassinato. É dentro desse espectro que Rajá de Aragão e Antonio Meliande, também diretor do filme, criam a história de uma mulher que, atordoada pela maneira como é explorada pelo sexo masculino, resolve vingar-se dele. Após ir para a cama com um velho rico e solitário, mata-o de maneiras cruéis e sanguinárias, assinando em sangue “Liliam, a suja” e deixando uma rosa.
É notável como Meliande constrói a personalidade de Liliam, interpretada por Lia Furlin, na condução do enredo: linda, de corpo escultural, trabalha como secretária, tendo como uma das funções satisfazer sexualmente o patrão, um tanto a contra gosto, tendo de ouvir ainda das colegas várias agressões verbais. Tida como objeto, Liliam se espelha na mãe, uma velha prostrada na cadeira de rodas, em decorrência da maneira como o marido a tratava. O jogo cênico entre a mãe, que só quer o bem da filha, insistindo para que se divirta, e Liliam, que se sujeita a práticas machistas, acelera a neurose da protagonista. Ela perde a sanidade. Cansada do chefe, vinga-se dele em outros velhos ricos. Ela os seduz, leva-os para a cama, dá-lhes prazer e, enfim, regozija-se, acabando-lhes com a vida. O gozo na morte é exacerbado pela interpretação de Furlin, que arreganha os olhos, perdida entre a loucura e o prazer.
Há de se destacar duas coisas nesse filme de 1981. A primeira delas é a crítica ao machismo e à ideia de que o homem deve ser servido pelas mulheres. A segunda é o não se furtar ao moralismo da repressão sexual por parte da protagonista. Em ambos os casos, parece muito simbólico que Liliam faça sexo antes de matar sua vítima – para além das necessidades mercadológicas da época. Liliam sabe diferenciar a exploração sexual do ato sexual em si, ou seja, não é travada ou reprimida porque tiram proveito dela. Ela sabe que sexo é prazer e não teme se aproveitar disso também. Outra coisa: é no momento em que o homem se vê superior (afinal, conseguiu comer a gostosa), que ela, em um ato extremamente sádico, tira-lhes a vida.
Um dos principais nomes da fotografia no Brasil, assinando mais de 100 filmes, de gente como Fauzi Mansur e Walter Hugo Khouri, Antonio Meliande começou a dirigir em 1977, com “Escola Penal de Meninas Violentadas”. Dirigiu, ao todo, quase 30 filmes, quase metade explícitos. A experiência em fotografia – tanto no enquadramento, quanto na luz – é evidente em “Liliam, a suja”. Meliande brinca com cores e jogo de luz, ora banhando de vermelho sua protagonista entre a fúria e o deleite, ora apostando nos reflexos do neon. Artifícios puramente atmosféricos, assim como o uso dos closes, nas vítimas e em Liliam, em cenas gore.
Poderia, facilmente, ser um dos grandes filmes da Boca (quiçá do cinema brasileiro), se não explorassem tanto as figuras de três bandidos de quinta, que compõem uma trama paralela e só parecem justificar o desenrolar da trama, um tanto estapafúrdia e largada ao acaso. Não tira os méritos do longa, porém, que tem uma força impressionante.
*Publicado originalmente no site Cinequanon, em agosto de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.