O Rei da Boca*
Direção: Clery Cunha
Brasil, 1982.
Por Gabriel Carneiro
O termo ‘Boca do Lixo’ para designar um determinado quadrilátero da região da Luz em São Paulo surgiu na virada dos anos 1940 pros 1950, por conta do baixo meretrício e da bandidagem que dominava o local. Alvo da imprensa e das políticas de saneamento, casa do crime e da marginalidade paulistana, só muito depois foi ser casa do cinema também. O meretrício continuou (e continua até hoje), mas o auge da bandidagem, com seus criminosos de fama, como Hiroito Joanides, Quinzinho, Nelsinho da 45, entre outros, se deu nos anos 1950 e 1960, ainda que mantivessem esquemas até os anos 1970, 1980. Esses bandidos que dominaram as capas dos jornais populares tiveram contato com o pessoal de cinema, numa relação de respeito mútuo e convivência.
Talvez por isso esse O Rei da Boca seja o grande filme feito a respeito da bandidagem e da malandragem paulistana, realizado de maneira bastante crua, sem sociologismos baratos – tentando entender, a partir de suas condições sociais, a criminalidade do protagonista – e sem glamourização das atividades criminosas. Feito dentro do esquema Boca do Lixo Cinema – quem mais poderia fazer um filme a respeito disso? -, com incomuns duas horas de duração para os filmes do polo, O Rei da Boca é o policial de melhor estirpe do cinema brasileiro.
Inspirado especialmente em Quinzinho na composição do personagem Pedrão, interpretado por Roberto Bonfim, mas tendo como base a história de todos esses ‘reis da boca’, o longa narra a história de Pedro Cipriano da Silva, um lavrador ordinário de Goiás que se aventura pelo garimpo, até chegar a São Paulo, onde é iniciado no submundo do tráfico de drogas, até galgar ao posto de rei.
À sua frente, Clery Cunha, um dos mais ecléticos cineastas da Boca, egresso do rádio e da televisão, diretor desde filmes infantis (“A Pequena Órfã”/1973) e comédias eróticas (“Pensionato de Mulheres”/1974, “Eu faço… Elas Sentem”/1975), a filme rurais (“Chumbo Quente”/1978) e terror espírita (“Joelma, 23º Andar”/1980), que talvez tenha se destacado mesmo pelos policiais (além de O Rei da Boca, “Os Desclassificados”/1972 e “O Outro Lado do Crime”/1979), ainda que numericamente sejam pouco superiores. Seria um típico artesão clássico, se não fossem suas invenciones com a câmera e o caráter documental que aplica no retrato do ambiente externo.
Em O Rei da Boca, Clery retrata a ascensão e a decadência de Pedrão. O filme abre com uma cena muito picotada que indica um sujeito sendo carregado pela polícia, jurando todos de morte, enquanto uma prostituta felliniana gargalha. Já vemos ali a síntese daquele submundo, de brigas internas e de exploração. A prostituta que ri do que descobriríamos ser o cafetão e traficante, o homem que aprende a ser inescrupuloso, seduzido pelo poder.
Regressamos. Pedro é um humilde lavrador nos rincões do Brasil. Seu grande sonho é conhecer a cidade grande. Surge uma oportunidade e o matuto seguindo seu sonho torna-se garimpeiro. Encontra uma pepita de ouro. Ali inicia sua corrupção: como trabalha para terceiros, a pepita não lhe pertence, mas vislumbrando ali sua única oportunidade para realizar seu sonho, rouba a pepita. O capitalismo predatório está ali – como vemos em muitos outros filmes da Boca, sem a intenção explícita da crítica, mas como retrato sensorial do que está no entorno -, e dopados pela ganância matam, torturam, perseguem qualquer um que possa ser suspeito de esconder os achados. Clery, nesse episódio, toma sua maior liberdade poética no filme, ao acompanhar a tortura do anti-herói Pedro com uma câmera subjetiva.
Logo mais, Pedro chega a São Paulo, obviamente, na Boca do Lixo, local próximo a estações de trem. Mal chega, já se mete, muito sem querer, numa briga de bar. É quando tudo muda, do sonhador para vítima da sociedade. Encarcerado com bandidos, sem ter pra onde ir, faz amizade com Jerico. É Jerico quem o coloca em contato com o tráfico e com o meretrício. Acompanhamos a evolução de Pedro nesse mundo. Nisso, destaque para a produção bem cuidada, que se preocupa em retratar essa ascensão até no figurino – é notável o trabalho feito nessa área.
Clery antecipou e muito o que viria a ser o filme de favela moderno, com a ascensão de um rei do crime e as múltiplas disputas internas para manter o controle. Seu O Rei da Boca foge completamente do maniqueísmo, com seu bandido bastante humanizado. Clery entende Pedro, respeita-o enquanto ser humano. Mas também não o mostra como uma vítima da sociedade atual: seus descaminhos não são culpa apenas de uma sociedade que não lhe deu chances, etc e tal, muito frequente em filmes do gênero – aquela coisa dos extremos, ou o bandido simplesmente é mal, ou é culpa da sociedade. O grande acerto do diretor em retratar esse personagem é saber ficar no meio termo, é mostrar que os descaminhos de Pedro, ainda que fruto de uma inaptidão das forças no poder, são responsabilidade dele também. Ao se encontrar nesse submundo, a única coisa que quer é poder – e dinheiro é poder, por isso a opção de capitalizar em cima dos outros. Quer ser ‘rei’, porque lhe parece importante. Assim, do nada, surta, parte para a dominação geral, eliminando adversário, chantageando os mais amedrontados. Vira um monstro.
*Publicado originalmente no site Cinequanon, em maio de 2013, dentro da coluna Viva a Boca do Lixo.